BY Sinara Gumieri
No último dia 26 de junho, o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou uma resolução sobre a proteção da família, convocando um painel sobre o tema, a ser realizado em alguns meses. Nos bastidores da votação, houve uma intensa disputa entre países conservadores que defendiam a inclusão de uma definição do casamento como a união entre um homem e uma mulher, e outros que demandavam a proteção expressa das diversas formas de família. Nenhum dos pleitos foi mantido na versão final do documento. Diante do risco de a resolução silenciosa sobre a variedade de arranjos familiares servir de munição para a restrição de direitos da população LGBT em fóruns internacionais, a reação de organizações da sociedade civil tem sido enérgica.
Alguns meses antes, o mesmo debate ganhou espaço em redes sociais no Brasil. O gatilho foi uma enquete no site da Câmara dos Deputados que propõe uma consulta sobre o conceito de entidade familiar prevista no projeto de lei do Estatuto da Família. A enquete conta hoje com quase 1,2 milhão de votos, e o excesso de acessos tirou o site do ar várias vezes. A monogamia heterossexual é o modelo familiar excludente do Estatuto, que segue em tramitação.
Em ambas as situações, ativistas de direitos sexuais e reprodutivos rejeitaram as pretensões governamentais de decidir como viver relações e cuidados. As pessoas devem escolher seus arranjos familiares, e ao Estado cabe protegê-los, interna e externamente, em sua diversidade. Há limites para o governo da família. Não se trata de uma demanda nova: há décadas, movimentos feministas denunciam a precarização da vida das mulheres no regime político do gênero, que continuamente as interpela pela família: para o aborto, são reprodutoras; para a violência doméstica, cuidadoras em mandato vitalício. Mas talvez caiba perguntar: até onde vai o governo pela família?
Em épocas de recessão econômica, o discurso da família como base da sociedade ganha ânimo: enquanto políticas sociais são enfraquecidas, as famílias – e nelas, as mulheres – são inevitavelmente as responsáveis pelo trabalho de cuidado não remunerado com crianças, doentes, idosos, dependentes. Políticas de transferência de renda precisam mapear e reconhecer famílias para esquadrinhar desigualdades. Diante da conversão de pessoas em sofrimento mental em dependentes institucionais pela segregação prolongada, políticas de saúde começam a pensar a refamiliarização do louco abandonado. Embora reconhecendo-a como avanço igualitário, ativistas LGBT questionam o efeito da legalização do casamento gay na invisibilização de outras formas de relacionamentos (sexuais ou não, binários ou não) de cuidado de longo prazo: temem o risco de o casamento deixar de ser uma opção para se tornar a única opção para os transgressores da heteronorma.
A variedade de exemplos talvez provoque a descrição da família como uma instituição que se defende das ingerências do governo. A família é uma tecnologia biopolítica. É também por meio dela – e não contra ou a favor dela – que a gestão da vida das populações se faz, adaptando-se às variações de sua composição ou estrutura. Perguntar pela família é perguntar também por distribuição de normalizações, acionamento de aparelhos disciplinares e dispositivos de segurança.
No Conselho de Direitos Humanos da ONU e no Congresso brasileiro, ativistas resistem ao governo heteronormativo das famílias. Mas as engrenagens de poder nem sempre são tão claras. Na disputa sobre a gestão da vida, talvez seja importante perguntar onde mais a família – e qual família – está.